terça-feira, 21 de agosto de 2012

DOUTORES E LICENCIADOS, BACHARÉIS E...O RESTO


Era tempo de veraneio. A brisa, que vinha da costa alentejana, convidava os vera­neantes a passearem. Enquanto descia por uma das ruas da aldeia que Rui Veloso e Carlos Tê tão bem souberem divulgar, eis que, no meio da multidão - não tanta, mas alguma - se me afigura uma cara que pensei reconhecer. Uma troca de olhares e...tomo a iniciativa de perguntar:
- Desculpa-me a ousadia, mas tu não és o…         ?
- Sim, sou o engenheiro…
Algo perplexo com a resposta, pensei, num ápice, virar-lhe as costas. Mas reagi com alguma diplomacia e cordialidade.
- Não te via desde os tempos do Liceu, meados de sessenta, quando praticámos desporto juntos, jogámos bilhar, e “cavalinhos” no Alentejano, e "polimos" algumas pedras da Rua do Comércio. Desde então o que tens feito?
- Já te disse que sou engenheiro e vivo em Lisboa, onde exerço a minha acti­vidade.
Perante nova exibição do título académico, resolvi actuar como ele desejava. Nos pou­cos minutos em que estabe­lecemos diálogo, tive o cuidado de o tratar sempre por engenheiro não refe­rindo mais o seu nome.
Após as despedidas, continuei o meu caminho, aproximei-me da falésia e sentei-me num dos bancos virados para o mar, onde o constante bater das ondas me fazia recordar a musicalidade e o poema:
Roendo uma laranja na falésia
Olhando o mundo azul à minha frente
Ouvindo o rouxinol nas redondezas
No calmo improviso do poente.

Introspectivo, confirmei que o tempo modifica as pessoas, altera a sua personalidade! Nunca tal me tinha acontecido! Mas não há dúvida que há sempre uma pri­meira vez, em tudo.
Passado algum tempo, regressei a casa pois apro­ximava-se a hora de jantar. Curiosamente, nessa noite, ao ouvir o telejornal, duas notícias me avivam a memória: a primeira, não mais importante do que a segunda, referia que, no Vale do Ave, os empresários procuravam e não conseguiam arranjar quem desejasse trabalhar na in­dústria têxtil, mesmo pagando acima da média. A outra, dava conta de haver mais de vinte mil licenciados desempregados ou a exer­cerem actividades em áreas diferentes daquelas em que se formaram.
Nem a propósito: primeiro o ex-colega liceal que, desde o primeiro momento do reen­contro, mostrou a intenção de ser tratado pelo título acadé­mico. Seguidamente, a notícia de haver trabalho e ninguém o aceitar e de gente desem­pregada, que não aceita qual­quer trabalho. Por mais que me esforçasse, não conseguia entrosar as coisas, embora sentisse que elas se rela­cionavam entre si. Mas final­mente fez-se luz.
Nos dias que correm, a importância de se possuir um título académico é, para alguns, a razão da sua existência, independente­mente do que saibam fazer e, pior ainda, da sua competência. Na verdade, há por aí tantos a quem chamam de "dou­tores" e só possuem a licenciatura! Estes, quanto muito, poderiam ser tratados por LIC, de maneira a não os confundirem com aqueles que são realmente Doutores. Já o outro dizia que "chapéus há muitos", que transportado para o momento actual poderá ser "licenciados há muitos, mais do que se possa imaginar". Duvidam? Dou apenas dois ou três exemplos:
-quem cumpriu o serviço militar, é licenciado;
-quem exerce funções para as quais é necessária car­teira profissional, é licen­ciado;
-quem tem carta de condução, é licenciado.
É verdade que são licenciados também aqueles que adqui­riram um grau ou título uni­versitário, entre o Bacharel e o de Doutor. Mas, mui­tas vezes, para se exercerem determinadas funções de grande responsabilidade não é necessário ser-se "Dr", "Lic" ou "Bac". Basta, somente,  currículo e competência para o desempenho das funções. Querem três exemplos:
-António Capucho, líder parla­mentar do P.S.D.;
-António José Seguro, deputado Eu­ropeu pelo P.S.,
-Armando Vara, Ministro-Adjunto do Primeiro-Ministro.
Afinal, Portugal é uma terra de muitos doutores que não são doutores, de muitos licenciados que querem ser doutores e de muitos licenciados que o são sem saberem. Consoante a importância das funções, e aliada ao traje que envergam, mesmo os que não o são, passam a sê-lo.
Por cá, e contrariamente ao que se passa em outros países europeus, dá-se demasiada importância aos títulos académicos. Isso tem a ver com a "cultura do penacho".
Manuel Alberto Morujo
26 de Agosto de 2000

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