quinta-feira, 21 de abril de 2011

UM DIA NA VIDA DO...

     Bem cedo acordou, como ha­bitualmente, gemendo e prague­jando por ser mais um dia de trabalho. Enquanto ouvia um barulho familiar, que vinha do resto da casa - onde a mulher, num corrupio, ralhava com os miú­dos para que se apressassem e, ao mesmo tempo, lhes preparava o lan­che - foi-se lavar e vestir, repetin­do os gestos diários. Olhando-se ao espelho, via um parvo a olhar para ele a perder a juventude, confirmada pelos poucos cabelos grisalhos que teimavam em aparecer.

Pouco tempo passado, saiu de casa com a mulher e os filhos a reboque, para logo perder a paciência porque um dos elevadores estava avariado e o outro nunca mais chegava. Meteram-se no carro. A mulher, uma vez mais, disse-lhe que o carro estava indecente e como o deixou chegar àquele estado. Nem lhe respondeu.

Chegados à escola, logo deixou os filhos. De seguida, abriu o rádio que começava a dar as notíci­as. Ficou ainda mais maldisposto pois falavam da crescen­te poluição, das inundações, da seca, da fome, da SIDA, da violência e das guerras. O trânsito emperrava e logo culpou o Governo porque não resolvia aquele cancro, apesar de serem do partido em que votara. Afi­nal, são todos iguais, disse para a mulher. O que eles querem é po­leiro e depois estão-se borrifan­do para os contribuintes honestos como ele, acrescentou. Pois, porque, sendo empregado e não podendo fu­gir aos impostos, vê os ricos ainda gozarem com os tansos como ele.

Minutos depois, deixou a mulher no empre­go e, um pouco mais à frente, parou o carro. Apressadamente, chegou ao seu local de trabalho. Como sempre e após mais de duas ho­ras após ter acordado. Atrasado, teve de ouvir mais uma reprimenda do chefe, que aguardava já a sua chegada. Ansiosamen­te, desculpou-se, uma vez mais, com o trânsito caótico com que todos os dias tinha de lidar.

Durante toda a manhã o te­lefone tocou e, já quase à hora de almoço, ainda não tinha entregado ao chefe o que este lhe pedira. Aproveitou a saída dos colegas e da telefonista, para completar o trabalho. Este, concluído, deixou-o na secretária do chefe e saiu para a rua cheio de fome, em direcção a uma tasca onde almo­çava, habitualmente, e que já es­tava cheia àquela hora, pelo que teve de comer de pé uma sopa e uma sandes de paio ou lá o que era aquilo.

O resto do dia foi, como nor­malmente, de intenso trabalho. Quando deixou o local de trabalho já a noite se avizinhava e efectuou o circuito inverso, depois de apa­nhar a mulher e os filhos. A hora de jantar, tardia como sempre, serviu para que os filhos cansa­dos e agitados discordassem do "menu". Foi preciso pôr ordem na mesa, com a mãe a dizer que não se pode comer só bifes, hambúrgueres ou pizas.

Pouco depois, sentou-se no sofá com o jornal que tinha com­prado ao almoço, enquanto a mulher arrumava a cozinha e os filhos estavam no quarto agar­rados à consola de jogos. Final­mente, os dois viam a televisão em sossego, até porque os miú­dos, cheios de sono, não tarda­ram a meterem-se na cama. Mas foi por pouco tempo pois a noite já ia avançada. E e o amanhã era outro dia. Ensonado, deitou-se, adormeceu e:
      
    SONHOU que a demagogia, as promessas impossíveis e a má fé tinham sido banidas da publicida­de, libertando as pessoas da pressão esmagadora e aniquiladora das vontades e das consci­ências;
SONHOU que os meios de comunicação social, em especi­al as televisões, tinham tomado cons­ciência do seu papel de informa­dores e formadores das socieda­des e que passavam a nortear a sua actuação por critérios de qualidade e de utilidade, em vez da lógica das audiências que ni­velam por baixo;
SONHOU que a todos os tra­balhadores tinha sido propor­cionado condições de higiene, segurança e saúde nos seus lo­cais de trabalho e que os servi­ços públicos passariam a cum­prir a sua função;
SONHOU que o tão propala­do desenvolvimento e progresso eram uma realidade, com um ver­dadeiro ordenamento do territó­rio que impedisse as assimetrias regionais, o crescimento desme­dido das cidades e a desertificação dos campos;
SONHOU que era possível andar mais devagar, às ordens da vida, respeitando os ritmos biológicos e do universo, ter tem­po para ter tempo;
SONHOU...

Manuel Alberto Morujo
  (10 de Setembro de 2004)


1 comentário:

  1. Também podia ter sonhado que em casa tinha uma atitude diferente para com o trabalho doméstico da mulher...pois ao que parece ela também trabalhava o dia inteiro fora de casa, mas era ela que respondia às necessidades de manutenção da família-

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