Bem
cedo acordou, como habitualmente, gemendo e praguejando
por ser mais um dia de trabalho.
Enquanto ouvia um barulho
familiar que vinha do resto da
casa, onde a mulher num corrupio
ralhava com os miúdos para que se
apressassem e, ao mesmo tempo,
lhes preparava o lanche, foi-se lavar e vestir, repetindo os gestos diários. Olhando-se ao espelho, via um parvo a olhar para ele a perder a juventude confirmada pelos poucos cabelos grisalhos que teimavam em aparecer.
Passado
algum tempo, saiu de casa com a mulher e os
filhos a reboque. E logo perdeu a paciência porque um dos
elevadores estava avariado e o outro tardava em chegar. Finalmente, exclamou. Lá
entraram no carro e a mulher, uma
vez mais, disse-lhe que o carro estava indecente e como foi possível deixá-lo chegar
àquele estado. Ele, nem lhe respondeu.
Chegados
à escola, ali deixou os filhos. De seguida, abriu o rádio que começava a dar as notícias. Ficou ainda mais maldisposto pois a temática do noticiário era sobre a crescente poluição, a seca, a fome, a SIDA, a violência doméstica e as guerras. O trânsito emperrava e logo culpou o Governo por não
resolver aquele cancro, apesar
de ser do partido em que votara.
Afinal são todos iguais, disse para
a mulher. O que eles querem é poleiro
e depois estão-se borrifando para os
contribuintes honestos, acrescentou.
Pois, porque sendo empregado e não podendo fugir aos impostos, via os ricos ainda gozarem com os tansos como ele.
Minutos
depois, deixou a mulher no emprego e, um pouco mais à frente,
parou o carro. Apressadamente, chegou ao seu local
de trabalho. Como sempre, e após mais de duas horas de ter acordado, ouviu mais uma reprimenda
do chefe, que aguardava já a sua chegada. Ansiosamente,
desculpou-se, uma vez mais, com o trânsito caótico com que todos os
dias tinha de lidar.
Durante
toda a manhã o telefone tocou e, já quase à hora de
almoço, ainda não tinha entregado ao chefe o que este
lhe pedira. Aproveitou a saída dos colegas, e da telefonista, para completar o trabalho. Este, concluído,
deixou-o na secretária do chefe
e saiu para a rua cheio de
fome, em direcção a uma tasca
onde almoçava, habitualmente, e que
já estava cheia àquela hora. Por isso, teve de comer de pé uma sopa e uma sandes de paio ou lá o que era aquilo.
O
resto do dia foi, como normalmente, muito atarefado. Quando deixou
o local de trabalho já a noite se avizinhava e iniciou o circuito inverso, depois de apanhar
a mulher e os filhos. A hora de
jantar, tardia como sempre, serviu
para que os filhos, cansados e
agitados, discordassem do "menu".
Foi preciso pôr ordem na mesa, com a mãe a dizer que não se pode comer só bifes, hambúrgueres ou pizas.
De
seguida sentou-se no sofá com o jornal que tinha comprado
ao almoço, enquanto a mulher arrumava a cozinha e os filhos estavam no quarto agarrados
à consola de jogos. Finalmente, os
dois viam a televisão em sossego, até porque os miúdos, cheios de sono, não tardaram a meter-se na cama. Mas foi por pouco tempo
pois a noite já ia avançada. E e
o amanhã era outro dia. Cansado,
e com sono, foi-se deitar. E SONHOU,
SONHOU UMA VEZ MAIS QUE:
A
demagogia, as promessas impossíveis e a má fé
tinham sido banidas da publicidade, libertando as pessoas da pressão
esmagadora e aniquiladora das vontades e das consciências;
Os meios de comunicação
social, em especial as televisões, tinham tomado consciência
do seu papel de informadores, e de formadores, das sociedades
e que passavam a nortear a sua
actuação por critérios de qualidade
e de utilidade, em vez da lógica das audiências que nivelam por baixo;
A todos
os trabalhadores tinham sido proporcionadas condições de higiene, segurança e saúde nos seus locais
de trabalho e que os serviços públicos passariam a cumprir a sua
função;
O
tão propalado desenvolvimento e progresso era
uma realidade, com um verdadeiro ordenamento do território que impedisse as assimetrias regionais, o crescimento desmedido das
cidades e a desertificação dos campos;
Era possível andar mais devagar, às ordens da vida, respeitando os ritmos biológicos do universo, ter tempo... para ter tempo;
SONHOU, e
continuou a SONHAR, pois a realidade a que aspira só é possível concretizá-la
em...SONHOS. Até quando…
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