Era tempo de veraneio. A brisa,
que vinha da costa alentejana, convidava os
veraneantes a passearem. Enquanto
descia por uma das ruas da aldeia que Rui Veloso e Carlos Tê tão bem souberem
divulgar, eis que, no meio da multidão - não tanta, mas alguma - se me afigura uma
cara que pensei reconhecer. Uma troca de olhares e...tomo a iniciativa de perguntar:
- Desculpa-me a ousadia, mas tu não és o… ?
- Sim, sou o engenheiro…
Algo perplexo com a resposta, pensei,
num ápice, virar-lhe as costas. Mas reagi com alguma diplomacia e cordialidade.
- Não te via desde os tempos do Liceu, meados de sessenta, quando praticámos desporto juntos, jogámos bilhar, e “cavalinhos”
no Alentejano, e "polimos" algumas pedras da Rua do Comércio. Desde então o que tens feito?
- Já te disse que sou engenheiro e vivo em Lisboa, onde exerço a
minha actividade.
Perante nova
exibição do título académico, resolvi
actuar como ele desejava. Nos poucos minutos em que estabelecemos diálogo, tive o cuidado de o tratar sempre por engenheiro não referindo
mais o seu nome.
Após as despedidas,
continuei o meu caminho, aproximei-me da falésia e
sentei-me num dos bancos virados para o mar, onde o constante bater das ondas me fazia
recordar a musicalidade e o poema:
Roendo uma laranja na falésia
Olhando o mundo azul à minha frente
Ouvindo o rouxinol nas redondezas
No calmo improviso do poente.
Introspectivo, confirmei que o tempo modifica as pessoas, altera
a sua personalidade! Nunca tal me tinha acontecido! Mas não há dúvida que há sempre uma primeira vez, em tudo.
Passado algum tempo, regressei a casa pois aproximava-se a hora de jantar. Curiosamente,
nessa noite, ao ouvir o telejornal, duas notícias me avivam a memória: a primeira, não mais importante do que a segunda, referia que,
no Vale do Ave, os empresários procuravam e não conseguiam arranjar quem desejasse trabalhar na indústria têxtil, mesmo pagando acima da média. A outra, dava conta
de haver mais de vinte mil licenciados desempregados ou a exercerem actividades em áreas diferentes daquelas em que se formaram.
Nem a propósito: primeiro o ex-colega liceal que, desde o primeiro
momento do reencontro, mostrou a intenção de ser
tratado pelo título académico. Seguidamente, a notícia de haver trabalho e ninguém o aceitar e de gente desempregada, que não aceita qualquer trabalho. Por mais que me esforçasse, não conseguia entrosar as
coisas, embora sentisse que elas se relacionavam entre si. Mas finalmente fez-se
luz.
Nos dias que correm, a importância de se possuir um título académico é, para alguns, a razão da sua existência, independentemente do que saibam fazer e, pior ainda, da sua competência. Na verdade, há por aí tantos a quem chamam de "doutores" e só possuem a licenciatura! Estes, quanto muito, poderiam ser tratados
por LIC, de maneira a não os
confundirem com aqueles que são realmente Doutores. Já o outro dizia que "chapéus há muitos", que transportado para o momento actual poderá ser "licenciados há muitos, mais do que se possa imaginar". Duvidam? Dou apenas dois ou três exemplos:
-quem cumpriu o serviço militar, é licenciado;
-quem
exerce funções para as quais é
necessária carteira profissional, é licenciado;
-quem tem carta de condução, é licenciado.
É verdade que são licenciados também aqueles que adquiriram um grau ou título universitário, entre o Bacharel e o de Doutor. Mas, muitas
vezes, para se exercerem determinadas funções de grande
responsabilidade não é necessário ser-se "Dr",
"Lic"
ou
"Bac". Basta, somente, currículo e competência para o desempenho das funções. Querem três exemplos:
-António Capucho, líder parlamentar do P.S.D.;
-António José Seguro,
deputado Europeu pelo P.S.,
-Armando Vara, Ministro-Adjunto do Primeiro-Ministro.
Afinal, Portugal é uma terra de muitos doutores que não são doutores,
de muitos
licenciados que querem ser
doutores e de muitos
licenciados que o são sem
saberem. Consoante a importância das funções, e aliada ao traje que envergam, mesmo os que não o são, passam a sê-lo.
Por cá, e contrariamente ao que se passa em outros países europeus, dá-se demasiada
importância aos títulos académicos. Isso
tem a ver com a "cultura do penacho".
Manuel Alberto Morujo
26 de Agosto de 2000