Descobri, no dia 14 de Fevereiro do corrente ano, que o Raul tinha um Blogue. Coisa estranha para quem não tinha empatia com as novas tecnologias. Li alguns textos ali publicados, não tantos como seria de esperar. O que a seguir publico, mereceu na altura o meu comentário, ali deixado:
Afortunados os que têm o privilégio de ler os teus
escritos com o toque de poesia que sempre foi possível ler na tua prosa. Este,
que acabo de ler, escrito não sei quando, é, seguramente, o exteriorizar do
sentimento com que vês, como aliás sempre viste, a realidade que te (nos)
envolve, muitas vezes ignorada.
Um abraço deste teu eterno Amigo.
Um abraço deste teu eterno Amigo.
Um sorriso de Deus
Foram-se as
tardes douradas transparentes de azul leve, cheirando a fruta madura. As tardes
de sol pálido espreitando por nuvens baixas, com crepúsculos arroxeados e
passos de folhas mortas sussurrando pelos recantos entre rabanadas de vento.
Algumas
árvores, ali no largo da feira, exibiam já solitárias, toda a nudez descarnada
dos seus ramos desvairados.
À saída da
cidade, antes da ponte dos mouros, havia uma álea cerrada que alastrava como um
incêndio.
O chão do
largo da igreja era um tapete castanho. Dos plátanos de copas em chamas,
desprendiam-se folhas secas, iam tombando uma a uma, tontas de melancolia, em
círculos como gaivotas, deslizando devagar, num torvelinho trémulo, como
lágrimas comovidas. O jardim, com a relva dos canteiros salpicada de amarelo,
parecia dormitar numa tristeza monótona que só o repuxo quebrava.
E o Outono
foi agonizando lentamente. Grave e triste como um requiem. No ar, deixou aquela
impressão doce e funda de nostalgia magoada, de último adeus entre ruínas, de
adágio quase pungente, de violoncelo de fogo, num suspiro desesperado. Como se
a natureza, varada de espanto e solidão, suspensa, nula e atónita, expirasse
enfim de vez e o homem não fosse mais do que a sombra de um fantasma à deriva
sobre a terra.
Mas por um
sorriso divino, cujo esplendor só o hábito nos impede de ver claro, em qualquer
canto remoto deste desértico abandono, germinava a seiva da vida, fermentava
nos ramos nus, rebentava a terra lavrada e a natureza em silêncio ia
retemperando as forças.
E era assim
todos os anos, desde o princípio dos tempos, desde que do caos se fez luz, luz
viva como um mistério, suave como um milagre, de que o homem é apenas uma
minúscula centelha, uma frágil faiúncula, um reflexo fugaz.
Dezembro
apareceu chuvoso e baço. O Inverno aproximava-se sobre as cinzas da paisagem
agora naufragada em névoa. Os ramos dos choupos, esguios, do outro lado do rio,
recortavam-se a traços negros, agrestes, nas colinas esvaídas. Os contornos dos
telhados esfumados num céu de chumbo. A água escorrendo pelas fachadas das
casas. As últimas folhas avermelhadas colavam-se ao asfalto molhado das ruas. A
cidade fustigada por uma morrinha teimosa ininterrupta e miúda cobriu-se de
nuvens negras boiando ao sabor do vento que desgrenhava os quintais.
Depois o
tempo limpou. Apareceram tímidas as primeiras abertas, derramando uma luz
mortiça sobre os laranjais de prata, curvados ao peso dos frutos. E vieram dias
de sol. Anoitecia mais cedo. O Natal estava à porta. As árvores do largo da
igreja foram enfeitadas com um rosário de lâmpadas ou de estrelas, suavemente
suspenso nos seus ramos quase despidos.
As montras
iluminadas das casas comerciais atafulharam-se de brinquedos, entre cânticos
ternurentos e um repicar longínquo de sinos.
Veio o Natal
dos Hospitais, transmitido pela TV. Realizaram-se as festas. Tiveram lugar os
convívios. E com uma sensação de paz branda escorrendo mansamente sobre a
indiferença metálica dos gestos habituais, sem quase darmos por isso, era a
véspera de natal. Na Rua Vaz Monteiro e na Avenida da Liberdade, o trânsito
automóvel tornou-se quase febril. Famílias que vinham de longe e atravessavam a
cidade a caminho das suas terras de origem. As pessoas corriam de uma montra
para a outra, de caixinhas' debaixo dos braços, entrando e saindo das lojas,
mexendo e remexendo em tudo o que estava à mão, espreitando os preços,
espiolhando prateleiras envidraçadas à procura das últimas compras, assistindo
impacientes à confecção dos embrulhos.
Depois o
ambiente de euforia quase contagiante foi-se transformado aos poucos numa e
espécie de despedida. A multidão ia-se dispersando. «Boas Festas» «Feliz Natal»
e cada um esgueirava-se de passo rápido a caminho de casa. Calou-se o ruído do
trânsito. E a noite foi descendo como um manto de veludo, sobre a cidade
recolhida. Só o latido de um cão rasgando o silêncio lá fora.
À volta da
mesa, a família ficou em vigília ardente.
Uma grande
paz interior. Na calma profunda da noite, o retinir dos talheres, as conversas
quase em surdina. E por um momento breve, a consciência plena de uma
simplicidade perdida, revela-nos brandamente todo o sentido das coisas.
Um sopro
inefável de Vida cintila na soturnidade outoniça da nossa dimensão humana.
Sinais do
quotidiano. O pão, o lume e a dança dos nossos gestos, a ternura e os afectos,
o voo casto das palavras, a alegria das crianças, fragmentos cintilantes da
realidade envolvente. Tudo ganha transparência. E o segredo da Verdade, parece
tão perto e nítido, tão cristalino e claro que chega quase a sentir-se como um perfume
de um cântico no silêncio do coração. Como um halo de transcendência ou um
sorriso de Deus.
Sabemos então
que é Natal.
(RAUL CÓIAS DIAS)
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